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Os nobres

chineses do

Morumbi

Texto extraído do livro À Paulistana: memórias de comida e imigração na cidade de São Paulo de Rafael Bahia. 

Fotos © Gabriel Cabral

Shíshīs são criaturas chinesas que protegem edifícios. Meio cães, um pouco gárgulas aos olhos ocidentais. São, na verdade, leões. De fato, as sílabas repetidas em seu nome transcrevem ao alfabeto latino dois ideogramas de sons parecidos, “pedra” e “leão”, que se diferenciam apenas pela entonação dada. Há séculos habitam a China, no mínimo desde a dinastia Ming, e se espalharam pelo mundo até chegar em uma rua tranquila do Morumbi, zona sul de São Paulo, onde montam guarda nos portões de um palácio: o restaurante Golden Plaza.

A rua Luís Gonzaga de Azevedo Neto termina em uma quadra verde de onde já se avista a Ponte Estaiada no horizonte, acotovelada entre os arranha-céus da Marginal Pinheiros. Comparar o Golden Plaza a um “palácio” não é só adequado, dado o ar de nobreza; mas também um pouco proposital, já que ele acontece de estar a apenas dois quilômetros e meio de um outro, o dos Bandeirantes, de onde o governador do estado despacha. Mas, naquele restaurante, a autoridade é outra. Tem ares míticos – ou talvez seja apenas a névoa subindo de panelões industriais com água fervendo para cozinhar arroz, legumes e macarrão.

Dentro da sua cozinha, Shu Chang Yor é um imperador de 95 anos. Um chinês alto e corpulento que, nas manhãs dos fins de semana, toma lugar no segundo átrio de uma enorme cozinha. Seu trono é um banquinho. Seu tapete vermelho, tecido com repolhos, nabos e cenouras cortados em fios sobre um balcão metálico.

 

Está fazendo rolinhos-primavera neste momento. Abre a massa, posiciona o recheio de legumes no meio, dobra-a por cima. Passa um dedo ligeiro em uma cola feita de farinha e água. Fecha-os. Um trabalho metódico e silencioso que o séquito de funcionários não ousa interromper; até porque o senhor não fala bem o português, apesar de estar aqui desde 1941, vindo de uma Hong Kong bombardeada por tropas japonesas, que marcaram a então colônia britânica como alvo durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Lá como cá, senhor Shu era cozinheiro. Trabalhou em plantações de arroz e trigo quando criança. Começou em um restaurante aos 14 e, mais tarde, cozinhava para uma família com a qual embarcou para o outro lado do mundo. A vida aqui seria melhor, diziam. E, assim, ajudou a compor os 180 mil chineses e descendentes que hoje moram na cidade¹, oriundos de ondas migratórias que começaram no ano de 1900.

Um chinês alto e corpulento que,
nas manhãs dos fins de semana, toma lugar no segundo átrio de uma enorme cozinha.

Seu trono é um banquinho. Seu tapete vermelho, tecido com repolhos, nabos e cenouras cortados em fios sobre um balcão metálico.

O primeiro restaurante do senhor Shu foi aberto na mesma pensão que recebia os chineses recém-chegados em 1954, no bairro de Perdizes, na zona oeste. A mesma casa deu origem ao restaurante Sino-Brasileiro, antigo conhecido da comunidade. Foi também sócio do Kinkon, na avenida Paulista, região central, que pouco tempo depois se deslocou algumas quadras para a rua Peixoto Gomide em 1975; e do Palácio Imperial, localizado em Pinheiros. Finalmente, inaugurou o Golden Plaza em 1984.


A vizinhança do Morumbi ainda não tinha sua pompa atual, muito menos era um bairro de presença asiática. Acabou sendo escolhida graças ao terreno, comprado barato, que poderia abrigar tanto o restaurante quanto a casa da família na porta vizinha.  Nos fundos, coube uma horta onde o senhor Shu cultivava acelga, e trazia os ingredientes restantes do Ceagesp – até hoje “seu Shu-Shu” é reconhecido pelos vendedores nas raras vezes em que faz as compras. Era uma época de trabalho árduo, para além da meia-noite. Não havia fins de semana ou folga. Portas fechadas, só então sobrava tempo para se divertir com o máhjòng (jogo de mesa chinês).

Hoje o Golden Plaza não recebe os visitantes pelo grande portão principal. Este é reservado apenas para solenidades, como tantos casamentos da comunidade chinesa já realizados ali. Quem chega tem de entrar por uma porta lateral, como se o prédio reiterasse sua cerimônia.

 

Uma vez lá dentro, as saudações são dadas por detrás do balcão, vindas dos filhos José Paulo e Emily, da nora Stella, ou da neta Stephanie, uma de quatro irmãos (com Tiffany, Stacey e Christopher) que formam a geração mais jovem da família Shu. O casal se conheceu em uma viagem da Singapore Airlines: José Paulo era um engenheiro viajando pela Ásia e Stella, uma comissária de bordo nascida em Singapura, de fala pausada e modos impecáveis.

 

“Yéyé é um homem trabalhador e de poucas palavras”, diz Stella sobre o sogro, utilizando a palavra em mandarim para “vovô”. “Mas a comida é sua forma de expressar amor. Para ele, a simplicidade é o ápice da sofisticação. Ele é simples e, por isso, é cheio de riqueza.”

O salão fica logo virando à esquerda, suntuoso, com as boas-vindas dadas por um sorridente Buda dourado. Sobre sua cabeça, emoldurando a passagem, um painel de arabescos em madeira vindo de Taiwan nos anos 1980. As mesas estão postas e a cor vermelha grita – no ideário chinês, significa alegria, sempre abundante no Ano-Novo. Há simbologia por todos os cantos; por exemplo, nos pórticos das quatro saletas encabeçados pelos ideogramas de cada estação do ano e sua flor característica: orquídea na primavera, lótus no verão, crisântemo no outono, e a flor da ameixeira no inverno. Também na estante atrás da caixa registradora, onde descansam as estatuetas dos três anciões chineses: o Longevo de bengala; o Sábio com um pergaminho; e o Próspero, levando muitos adornos.

Chegam às mesas receitas que vieram na bagagem de seu cozinheiro do outro lado do mundo no formato de um livro, que ele ainda possui – com exceção do camarão empanado, cuja técnica diz ser invenção sua para equilibrar a textura crespa e o interior macio. Também são servidos peixes inteiros em um caldo de soja escuro, que tinge os cogumelos que o acompanham à moda da província de Zheijang, no leste do país. O pato, no cardápio, vem com um molho apimentado de Sichuan, região no sudoeste. E o chāsīu tem gosto familiar para o senhor Shu: barriga de porco marinada em caldo levemente doce, assim como se come em Guangdong e em Hong Kong. Faz lembrar sua China, que hoje lhe aparece em memórias “às vezes boas, às vezes ruins”, segundo ele, mas sempre viva nas mesas que alimenta, reinando absoluto na sua própria Cidade Proibida.

1  Consulado Geral da República da China em São Paulo, 2012. Disponível em: http://saopaulo.china-consulate.org/pl/fyrth.
Acesso em: 9 de nov. de 2019.

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